Estacionamento

- Queridinho, é... - Dante falou, desviando o olhar e ficando um pouco vermelho.

☼ Eles não tinham apelidos carinhosos um para o outro, normalmente utilizavam todos os apelidos conhecidos pela humanidade para se referir ao outro, mas ainda assim não tinham um definido. Haviam acabado de achá-lo, agora tinham algo mais íntimo e pessoal para eles pelo qual poderiam chamar um ao outro e sabendo que aquela palavra possuía muito mais peso do que poderia aparentar. Dante esticou sua mão e segurou a de Hanna, acariciando a mesma levemente. ☼

- Queridinha. - Ele falou com um sorriso.

- Eu também gostei.

☼ Não era necessariamente algo original de se chamar o outro e poderia muito bem começar a ser tão normalizado entre eles que perderia o sentido, mas Dante tinha a sensação de que estariam chamando um ao outro assim até o fim de seus dias. Na verdade, pensar nisso trouxe lágrimas aos olhos de Dante que rapidamente as limpou, ele nunca havia parado para imaginar-se estando ao lado de Hanna até o fim de suas vidas, tendo vivido décadas e décadas ao lado um do outro. Era uma visão linda demais e que mexia profundamente com ele. ☼

- Não é nada. - Adiantou-se, sabendo que isso poderia preocupar seu pai e Hanna. - Só pensei em algo que me deixou feliz.

- Do nada me veio a mente a imagem de nós dois já velhinhos, ainda um ao lado do outro. É meio bobo, mas foi isso que eu pensei.

☼ Sigmund abriu um sorriso de compreensão e voltou a comer, tivera sonhos parecidos quando estava na idade de Dante e... Bem, não tinha mais seus vinte anos, estava nos seus quarenta anos e provavelmente não iria ver muitos daqueles momentos tocantes que Dante estava imaginando, na verdade nem sabia se iria viver para ver o seu plano dar certo. A sua vida era muito perigosa e haviam inimigos em todos os cantos, ele eventualmente iria morrer e deixar para trás as pessoas que tanto amava. Diferente de Dante, ele conteve as suas lágrimas através de sua raiva, não acreditava que estava sentindo medo da morte quando já havia a aceitado. Ela estava longe, mesmo com quarenta e seis ele ainda era jovem o suficiente para estar na metade de sua vida. ☼

- Querem sobremesa? - Perguntou Sigmund, sorrindo e afastando aqueles sentimentos.

- E é perfeito.

☼ Sigmund levantou-se e começou a recolher algumas das coisas que estavam na mesa que já não seriam mais utilizadas, também para abrir espaço para a sobremesa que estava por vir. Dante se mostrou receoso, o pai era conhecido por exagerar e quando o assunto era sobremesas ele costumava ir ainda mais além. Sigmund então afastou-se para a cozinha para colocar tudo em seu devido lugar, retornando em seguida com uma sobremesa meio simples, bolo de sorvete. Na verdade considerando que eles já haviam comido bolo era difícil considerar aquilo uma sobremesa, mas era mais simples do que Dante estava esperando. Mas tinha uma pegadinha, sempre tinha uma pegadinha. Sigmund serviu os três e assim que Dante e Hanna comessem eles notariam que Sigmund havia escolhido os melhores ingredientes para fazer aquilo. ☼

- E então, o que acharam? - Perguntou ele, animado.

- Já é o meu maior pedido.

☼ Uma vida longa ao lado de Hanna, com uma família construída ao redor deles e com um futuro belo ao qual devia ser aproveitado plenamente por eles, um descanso longo que era muito bem merecido. Sim, cada parte daquilo lhes era devido, ambos haviam passado por tanto e se esforçado tanto e ainda se esforçariam mais para terem esse futuro em mãos, tudo o que haviam superado era apenas a marca que deixavam para trás de que teriam um final felizes para sempre mesmo que o universo em si discordasse disso. Eles... Mereciam um descanso daqueles, não só por conta do que haviam passado, mas por conta do que estavam dispostos a fazer um pelo o outro. Eram o tipo de casal que merecia esse repouso. ☼

- É mesmo? Fico feliz! - Sigmund riu, comendo um pedaço do próprio bolo enquanto sorria.

☼ Sigmund não podia dizer que tinha experiência com aquele tipo de situação, talvez fosse por isso que tivesse preparado tudo aquilo de maneira exacerbada, porém nunca se envolvera nos relacionamentos que as crianças da Casa tinham e normalmente só vigiava para se garantir que estava tudo indo bem. Depois de um tempo parou de observar os mais velhos, como Lennart, deixando que eles se descobrissem por conta própria e que evoluíssem da melhor maneira possível. Mas estar sentado em uma mesa com seu filho e a namorada dele... Ele não sabia bem o que fazer ou o que falar, talvez o melhor fosse deixar que a conversa fluísse naturalmente, mas ele ainda assim ficava com a sensação de que deveria estar falando algo. ☼

- O que o seu pai faz, Hanna? - Ele perguntou, polidamente. Sabia o suficiente para não perguntar da mãe.

- Um professor universitário, é? Eu teria sido um, mas como acabei criando a organização eu não tive como tirar meu doutorado. - Contou Sigmund, não estava mentindo para poder criar algo que Hanna pudesse reconhecer nele, era a mais pura verdade.

- Meu pai se formou em Medicina. - Dante emendou, comendo um pedaço de bolo em seguida.

- Fui parte dos Médicos Sem Fronteiras por um tempo e depois de atuar como médico no finalzinho da Guerra do Vietnã eu acabei saindo e criando minha própria organização. - Sigmund estendeu-se um pouco para a frente para pegar um docinho que ainda estava em cima da mesa e rapidamente comeu-o. - Não somos tão grandes quanto eles, mas temos força aonde importa.

Para Dante aquela era a sua primeira vez ouvindo a história de Sigmund, mesmo que ele tivesse mentido no final. O rapaz aproveitou para ligar as pontas soltas e deduziu que seu pai havia sido recrutado para a Casa logo após a Guerra do Vietnã, o motivo de ele ter entrado nessa organização era um mistério ainda e provavelmente permaneceria assim, Dante não sabia o que levara seu pai a pensar que seria uma boa ideia se juntar a uma organização como essa, mas as pessoas mudam.

- Basicamente, sim. São responsáveis pelas vidas de pessoas afinal de contas. - Dante argumentou, recostando-se na cadeira e olhando para o teto por um tempo. - Mas há outros igualmente importantes.

☼ Sigmund era um gênio. Apesar de que ele jamais iria se chamar disso, era um fato de que ele era um gênio e um que ficara bem conhecido no campo acadêmico da medicina, tendo graduado da faculdade com apenas quinze anos de idade ele ficara famoso por sua concentração e por sua bondade que eram inigualáveis. A guerra o mudou, não era algo que um garoto de dezesseis anos devesse presenciar porém muitos com a sua idade estavam lutando por seu país e por suas famílias, fez o seu melhor para salvar a vida do máximo de pessoas possível e ainda assim ficou com um gosto amargo na boca. O problema não estava apenas nas guerras, estava no mundo como um todo, ele precisava mudar e precisava ser alterado rapidamente. Foi nesse momento que a Casa se aproximou. Ele não sabia o que a organização realmente era e quando descobriu já era tarde demais. ☼

- A sociedade só é capaz de funcionar se houver compaixão. - Sigmund pegou mais um doce para si. - Sem compaixão, ficamos em um buraco de escuridão.

- Mas enfim, o assunto está ficando sério demais. - Sigmund falou, buscando escapar de qualquer conversa que pudesse envolver as guerras que já tinha visto. - Como tem ido os cursos de vocês?

- Ah. No meu está tudo certo, uma das minhas aulas acabou de ficar bem chata, mas tirando isso está tudo normal. - Dante parou de comer para falar e logo em seguida voltou a dar uma garfada no bolo de sorvete.

☼ Sigmund não era uma pessoa que gostava de ficar trocando o assunto, principalmente quando haviam pessoas interessadas no mesmo, mas para ele era como cutucar uma ferida que nunca se fecharia completamente. Seu tempo como médico voluntário fora curto, mas fora o suficiente para que ele tivesse todos os tipos de memórias ruins, também logo em seguida começara a trabalhar como um pesquisador e treinador da Casa e apesar de ser grato por ter tido a chance de salvar tantas crianças, ele ainda sentia certo arrependimento de sequer ter aceitado aquele convite visto todo o dano que ocorrera desde então. ☼

- Teatro se originou na Grécia Antiga, não é? Lembro vagamente de ter estudado sobre isso muito tempo atrás. - Disse Sigmund, sabendo que o estudo havia sido ao lado de Lennart e dos demais Treze Fúrias.

Dante ia falar algo, mas calou-se ao ouvir o som vindo da porta. Achou estranho, seu pai normalmente não tinha visitas e as que vinham raramente se davam o trabalho de bater na porta, sempre presumindo que ele estava sozinho, portanto Dante gesticulou para que seu pai permanecesse sentado e que ele iria atender a porta. Não estava esperando um ataque ou algo do tipo, poderia ser realmente qualquer coisa, talvez algum vizinho vindo falar com ele ou algo do tipo. Caminhou até a porta da frente com calma e a abriu, apenas para ser surpreso por quem estava ali.

- Eu não esperava vocês!

Normalmente deixaria Sigmund em paz no seu canto, mas haviam certas coisas sobre o futuro da Casa que precisavam ser discutidos e ele imaginava que Nymeria já provara ser de confiança ao ponto de poder saber certos detalhes do plano geral de Sigmund. Viera até ali com ela com o simples propósito de ter uma conversa rápida, portanto surpreendeu-se quando a porta abriu-se e do outro lado dela estava Dante. Isso mudava as coisas, porquê se ele estava ali então Hanna provavelmente estaria também e ele imaginava que não era hora de revelar certas coisas para ela, teriam que fingir e enrolar por um longo tempo até que pudessem de fato conversar sobre os assuntos mais sérios. Vestiu um sorriso simpático, pretendia mantê-lo durante toda a duração do tempo em que estiverem ali, e estendeu sua mão para frente capturando a de Dante e cumprimentando-o.

- Oi Dante. Não sabia que estaria aqui hoje. - Lennart estava mentalmente se xingando por não ter ligado antes para Sigmund para garantir que poderiam ir. Sua outra mão segurava a de Nymeria gentilmente. - Eu pensei em fazer uma visita rápida para o Sigmund, espero não estar interrompendo nada.

- Ainda existem teatros só pela diversão, imagino. - Sigmund começou a pensar, porém não se lembrava de ter ido assistir algo do tipo. Ainda que gostasse de musicais, ele só via os de alta produção.

Dante estava radiante, um sorriso belo estampado em seu rosto e a alegria basicamente vazando para fora de seu corpo. Ele realmente adorava aqueles dois e vê-los sempre era um motivo de felicidade, em teoria ele e Lennart eram irmãos ainda que Len nunca tivesse sido formalmente adotado por Sigmund ele era praticamente parte da família, até era engraçado pensar nisso uma vez que o novo na família ali era o próprio Dante ainda que fosse mais velho que Lennart. Ele adiantou-se para frente, após cumprimentar Lennart, e deu um abraço apertado em seu irmão em seguida virando-se para Nymeria e a abraçando também, ainda que com mais cuidado do que com o outro.

- Não é incômodo algum, entrem! - Ele disse animado, mas então seu sorriso sumiu por um momento e ele perguntou em voz baixa, apontando para os curativos de Nymeria. - O que aconteceu?

- Imagino que a Hanna esteja aqui.

Lennart disse isso baseado no pouco da conversa que ouvia do lado de dentro, sua audição era mais aguçada do que o normal então ele não deixava muito passar batido quando estava dentro de seu alcance. Retribuiu o abraço de Dante e olhou para ele de maneira preocupada quando o mesmo perguntou sobre o ferimento de Nymeria, não achava que era uma boa ideia falar sobre isso no aberto uma vez que não dava para saber quem estaria ouvindo, mas também não poderiam falar dentro da casa uma vez que Hanna estaria lá. Olhou para Nymeria, parecendo esperar alguma ordem silenciosa, fosse para mentir ou para contar uma versão extremamente resumida dos acontecimentos. Seu olhar basicamente dizia ''Eu deixo isso em suas mãos.'' pois imaginava que nenhum dos dois ali fossem gostar de mentir para Dante, porém haviam certas coisas que ele não precisava saber.