Estacionamento

Ele levantou-se. Era tanto sangue que fazia-o lembrar-se do passado. Meses atrás, quando ainda fazia parte daquela organização maldita, correndo de um lado para o outro para realizar missões para eles, temendo que fosse morrer no outro dia. Mas, havia algo de diferente ali, não era mais a mesma sensação de antes. Era quase como se... não tivesse tanta adrenalina envolvida assim. Ele sentia mais era uma paz interior, algo que o deixava em um estado sereno. Ele então despertou pela palavras de Melissa e voltou-se para ela, espalmando suas mãos e limpando o sangue e carne delas.

- Uma morte nunca é algo bonito. Somos todos animais por dentro, que fingem ser algo além disso. Morrer de forma heroica, ou morrer bonito é algo que fica na literatura e no cinema. Toda morte é algo horroroso - Falou Noah, ainda estando naquele estado calmo de antes, era como se não tivesse acabado de matar alguém - E acredite em mim, ele preferia morrer assim do que de uma maneira mais... controlada. Agora precisamos sumir com esse corpo. Sabe dirigir?

Noah, pela primeira vez em muito tempo, sentia-se em paz. Por mais que não concordasse com o plano que os 50 Blessings traziam, ele tinha que admitir que os humanos eram apenas animais que tentavam fingir ser algo diferente do que eram. Essa era a única explicação possível para aquela sensação que percorria o seu corpo, como se a melhor massagem do mundo tivesse sido aplicada em seu corpo, tirando toda a tensão de antes. Ele apenas sentia-se relaxado e nada além disso. Abaixou-se, levando a mão até um dos bolsos do homem, pegando as chaves do carro e lançando-as para Melissa, deixando que um pequeno sorriso surgisse em seus lábios.

- Eu tenho um local em mente, não se preocupe. A essa hora do dia ele estará bem vazio. Você não é a única que andou explorando algumas coisas do Shadow.

Loucura era uma estado que estava abaixo de Noah Smith, não, ele não era apenas insano. Ele era algo mais. Um outro nível. Como um animal selvagem, cujos instintos estavam ligados a caçar e matar, ele lutava. Era a descrição perfeita para ele e outros membros da Fifty Blessings, animais, sedentos de sangue. Não era nenhuma surpresa que aquele grupo patriótico tivesse conseguido juntar tanta gente em tão pouco tempo. Haviam muitas pessoas que eram assim, mas agiam normalmente por medo da reação da sociedade. Mas, com aquelas máscaras, eles mostravam o que realmente era. Bestas.

- Eu não estou atrás dele. Eu ouvi rumores e achei melhor checar, para ver se ele não estava com aquele grupo. Ele nunca teve contato com eles, mas... um ex-membro estava entre os homens dele. Achei melhor agir para me prevenir - O que Noah falara era loucura. Ele acabara de dizer que estava indo contra Shadow e todo o seu exército apenas por ter uma possibilidade da Fifty Blessings ir para Windfall e se aliar com o homem.

Ele pegou o corpo do homem morto e o colocou no porta malas o fechando bem logo em seguida. Entrou no banco do carona e ditou para Melissa a localização. Ela se tratava de uma casa abandonada, perto da rodovia que ligava Windfall a outras cidades do Oregon. Ela antes fora usada por Shadow para esconder seus produtos, possivelmente no começo de sua carreira. Mas agora, estava vazia e ninguém pensava em vigiar aquele local.

- Olha eu... eu sei que isso aqui não é algo comum. Eu só pedi para você arrumar minha moto e tudo já foi para a merda. Você não precisava se envolver nisso, me desculpe - Ele disse, apoiando seu braço na janela do carro - Mas ainda assim, eu preciso que você não fale sobre o que aconteceu aqui. Você eu consigo proteger daqueles malucos, mas o resto das pessoas não.

- Talvez, mas eu cansei de fugir. Simplesmente pegar minha moto e ficar mudando de cidade em cidade não vai adiantar nada. Uma hora ou outra eles vão me alcançar. Ele vai me alcançar. Eu só quero me garantir que quando eles cheguem, não tenham nenhum aliado nessa cidade - Noah estava determinado a por um fim em todos aqueles que o buscassem, assim como aquele homem que ele estava colocando no porta malas do carro.

Noah estava no banco do carona, olhando para o lado de fora da janela daquele carro, vendo conforme as paisagens da cidade passavam rapidamente. Odiava ter que estar fazendo uma pessoa como Melissa ajudá-lo naquilo, ela não tinha nenhum envolvimento com aqueles idiotas patriotas, mas ela já testemunhara o suficiente e sabia quem Noah era. Iria deixá-la de fora das suas incursões contra Shadow, uma vez que ela própria parecia ter seus próprios motivos para ir contra ele, mas daquilo ali... era tarde demais para falar para ela fechar os olhos e ir embora.

- Eu não vou piorar essa cidade.

Era quase uma promessa, porém isso era algo que Noah era incapaz de fazer. Ele nunca prometia nada, uma vez que sabia que a vida era inconstante demais e que muitas promessas normalmente eram quebradas. Mas aquilo chegou perto de ser uma. Poderia ser considerado como uma palavra de honra, da parte de Noah, que ele tentaria o seu melhor para não fazer de Windfall um inferno maior do que já era.

- Você parece ser uma pessoa boa, e claramente tem algo contra o Shadow. Logo, não deve ser uma pessoa ruim, apesar de parecer que quer me matar a todo momento - Ele deu uma leve risada - Sem falar que, você está me ajudando, isso conta pontos.

Ele olhou no espelho retrovisor do carro e viu... viu aquele homem com a máscara de galo novamente, sentado no banco de trás, confortável e, de alguma maneira, sorridente. Melissa não podia vê-lo, uma vez que ele era o fruto das alucinações de Noah, porém Biker podia ver ele, e ouvi-lo.

- Proteger? Você sabe muito bem que isso não está na sua natureza. Você mata, mata e mata - Disse a voz daquele ser, conforme ele apoiava-se no banco do carona e a máscara se aproximava ainda mais de Biker - Você tem certeza que um dia desses não vai acabar matando essa garota? - Ele deu uma leve risada e ergueu sua mão direita, três dedos estendidos - Aqui estão três avisos para você. Um, você vai encontrar um inverno pela frente. Dois, um presente chegou no seu quarto. Três, é melhor aceitar a gentileza que outra pessoa lhe oferece.

E com isto, o ser desapareceu, deixando para trás um Noah que suava frio.

- É claro que eu sou um idiota, eu me envolvi com um grupo de assassinos só para ter um pouco de adrenalina na minha vida. Um símbolo de inteligência é algo que eu não sou - Justificou-se Noah, coçando sua nuca no processo.

Noah estava longe de ser uma pessoa necessariamente amigável também. Ele era extremamente caótico, vivendo pelo momento, se havia alguma oportunidade para ele injetar-se com drogas e sair curtir a sua vida, ele a aproveitaria. Se aquele grupo de maníacos patriotas não o matassem, aquele estilo de vida do rapaz o mataria primeiro. É claro, agora que era um fugitivo daquela organização, ele diminuíra consideravelmente o tanto de drogas que usava, assim como mantinha-se exclusivamente na academia e nos locais próximos a ela. Assassiná-lo em um local onde haviam jovens e em plena luz do dia não era o jeito daqueles psicopatas agirem. Não por terem algum tipo de código de ética e moral, mas porque isso atrairia atenção demais.

- Não vai haver a necessidade de esmagar a minha cabeça - Disse Biker, com um pequeno sorriso em seu rosto. Ele gostava daquele jeito mais agressivo de Melissa, era como uma brisa de ar refrescante, se comparada com as normais. A maioria das garotas evitavam falar o que realmente pensavam e raramente faziam ameaças daquele tipo. Ele gostava de pessoas honestas - Depois disso, não vai mais precisar me ajudar.

Era como se ele tivesse visto o demônio em pessoa. Estava claro o quão apavorado Noah estava. Aquelas alucinações estavam ficando frequentes, frequentes demais. Ele chacoalhou sua cabeça de um lado para o outro e deu alguns tapas leves em seu rosto, em uma tentativa de acordar.

- Não é nada, só estou... cansado - Disse ele - É aqui! - Ele gritou de súbito, apontando para um galpão na beira da estrada.

- Também não precisa concordar comigo né? - Ele comentou, mas deu uma curta risada logo em seguida.

Noah não se importava com a violência. Não podia dizer que era um fã dela, mas também acreditava que ela era uma resposta natural da humanidade. Eles eram animais no final das contas. E animais lutavam com unhas e dentes, sendo capazes de fazer as maiores das barbaridades em favor do que desejavam, fosse se alimentar ou se defender. Apesar de serem mais complexos, os humanos seguiam um padrão parecido. Eles lutavam pelo o que queriam. E muitas vezes, a violência era a forma que encontravam de lutar. Alguns iam além, como era o caso de Shadow e de seus capangas, que ultrapassavam barreiras pelo seu próprio benefício.

Mas quem era Noah para dizer que ele era diferente? Ele que matara apenas para sentir a adrenalina correr pelas suas veias, para sentir aquela sensação prazerosa preencher cada centímetro de seu corpo. Noah era um psicopata, não havia dúvidas sobre isso, e era um extremamente violento ainda por cima. Ele gostava de ver o que acontecia quando seus punhos se chocavam contra o nariz de uma pessoa, adorava ver o vermelho jorrar da garganta das pessoas quando seu cutelo as cortava. Gostava de vê-las pedir por clemência, de vê-las rastejando e tentando escapar do inevitável fim. Havia apenas um pingo de sanidade em Noah, e não era necessário muito para gastar dito pingo.

- O tipo de lugar onde eu posso trabalhar - Ele falou, descendo do carro e abrindo as portas do galpão. Ele estava completamente vazio, tirando algumas caixas vazias que haviam ali. Em um dos lados, haviam alguns litros de gasolina, em galões vermelhos - Estacione o carro aqui dentro.

Havia algo dentro de Noah, que crescera conforme os anos passaram, apenas aumentando de tamanho a cada coisa que ele presenciava. Ele sempre sentira-se assim, conforme caminhava pelas ruas, observando a sociedade ao seu redor, lendo as notícias dos vários crimes que afogavam aquele mundo, poderia-se até dizer que esses erros da humanidade moldaram o modo de pensar daquele rapaz. Mas, era algo completamente infantil afastar essa culpa dele próprio.

Não, Noah sabia muito bem que sua visão de mundo não era aceita por todos e era compartilhada por poucos. E fora com esses poucos com quem ele trabalhara durante alguns meses, porém eles iam além até do que o próprio rapaz acreditava. Os humanos eram animais, a violência era algo normal, era uma resposta que estava entranhada no DNA de todos os Homo Sapiens, algo do qual eles não conseguiam escapar, que poderia até mesmo demorar, mas em que algum momento iria aflorar.

- Heh, não prometo nada. Espere lá fora - Ele disse, descendo do carro e abrindo o porta malas, retirando o corpo e colocando-o deitado no banco de trás. Conforme Melissa saía, ela podia ver conforme ele abria os galões e espalhava toda aquela gasolina por cima do veículo, por dentro, por cima do corpo, por tudo. Ele fez uma pequena trilha que levava para longe do carro, quase na porta do armazém e puxou um isqueiro de seu bolso, acendendo aquela trilha e, aproveitando que o foco ainda não havia chegado naquela pilha de metal e gasolina, ele acendeu um cigarro para si naquela língua de fogo e tragou, conforme saía para o lado de fora. Ele gesticulou para Melissa e ambos fecharam o portão. No momento que ele soltou a fumaça de sua boca, a explosão ocorreu, lá dentro - Pronto, vamos voltar. Vai demorar para notarem o que ocorreu aqui, meio afastado.

Enquanto Melissa estava tendo um pequeno piripaque, Noah estava absolutamente tranquilo. Não era a primeira vez que fazia aquilo e ele duvidava que seria a última, o cheiro de cadáveres queimando, de gasolina e o calor do fogo descontrolado eram coisas comuns na vida dele, que ele já presenciara tantas vezes que tudo isso se tornaram velhos amigos de Biker, seguindo-o para todo lugar que ele fosse. Ele retirou o cigarro de sua boca e soltou a fumaça para cima, seus olhos virando-se para ver o ataque que Melissa estava sofrendo.

Erguendo uma sobrancelha, ele pareceu querer erguer uma das mãos para segurar o ombro de Melissa, porém ele simplesmente abaixou a mão que mal começara a subir. Ele não sabia por onde começar, ele havia envolvido ela naquele problema que era unicamente seu. A fizera presenciar seu lado animal, fizera-a dirigir o carro até ali e ainda a fizera presenciar conforme ele se livrava de um corpo. Suspirou e soltou mais uma vez a fumaça de seu cigarro.

- Mel, não se esquente. Tem mais deles vindo - Ele em seguida notou que aquilo não iria acalmá-la - Eles vão se livrar de qualquer vestígio de que esse corpo existiu. Não se preocupe.

- Eles não vão ir atrás de você. Você não aparenta ser russa - Disse Noah.

Aquela deveria ser uma das organizações mais patriotas e xenófobas que o mundo já vira, matando pessoas simplesmente por suas nacionalidades. Porém, isso dava uma certa segurança para com Melissa, uma vez que eles pareciam estar tão focado em um grupo de pessoas, que o resto era ignorado. Não havia notícias de os mascarados irem atrás de russos inocentes, apenas dos mafiosos, mas quanto tempo demoraria para eles começarem a matar inocentes? Não muito, pelo visto.

- Eu avisei

- E você só foi notar isso agora?

Noah colocou uma das mãos no bolso, a outra ainda livre para pegar o cigarro que estava em sua boca, e refletiu um pouco. Seu passado fora conturbado, seus pais morreram e lhe deixaram uma boa quantia de dinheiro, qualquer parente que tivesse sobrando não se importava com ele e ele se viciara em adrenalina apenas para ter um motivo para viver. Não fora uma das melhores vidas, mas era a que ele tinha e a que levara para frente. Abandonado, solitário, com apenas uma violência animalística de seu lado, ele se aliara aos Fifty Blessings para se jogar de frente com a morte, esperando que ela o levasse. Porém, ele sobrevivera a tudo. Nem mesmo uma máfia fora capaz de matá-lo. Ou ele era um sobrevivente nato ou alguém lá em cima não queria que ele morresse.

- Eu vi um ponto de ônibus quando estávamos vindo para cá, podemos pegar ele - Disse Biker, começando a caminhar ao lado de Melissa.

A expressão de Mel fazia com que Noah risse. Já vira olhares piores, vindos de pessoas piores. É claro, ele não duvidava da capacidade que Melissa tinha para machucar, era uma capacidade que havia em todos os humanos. Mas machucar era algo, matar era outro. E Melissa, apesar de negar, era uma pessoa boa. Logo, ele ria. Talvez aquilo viesse a irritar Melissa, talvez não, mas não era algo que importava para Noah. Ele havia finalmente passado para um próximo nível de sua insanidade. Ele já não se importava com nada. Antes ele ainda tinha um senso de preservação própria, tinha medo de morrer e por isso lutava com unhas e dentes. Agora, ele ainda lutava com tudo o que tinha, mas apenas por lutar. Não possuía uma propósito, não possuía um objetivo. Ele vivia só por viver.

- Ah, acho que encontro ela sim - Disse Noah.

- Eu estou com a chave, e mesmo que roubem é difícil não notar alguém carregando uma moto daquelas.

A moto de Noah era algo importante para ele, quase como uma companheira de viagem, mas ele nunca se preocupara demais com o fato de que alguém poderia roubar ela. Se alguém fosse louco o suficiente para fazer isso, bom, teria que ter uma conversa longa e bem pessoal com o Biker, uma pessoa que, como Melissa notara, não deveria ser irritada por motivos tão banais quanto um roubo.

- Não se preocupe comigo - Falou Noah, apontando para o ponto de ônibus mais a frente - Se preocupe com quem estiver no meu caminho - Ele retirou sua blusa e a passou para Melissa, para que ela ao menos tivesse uma vestimenta decente.