Estacionamento

- Só não deixe isso subir a sua cabeça. - Sigmund brincou.

E então calou-se. Aquela frase era tão... Melada. Era o que poderia vir de um adolescente que acabara de se apaixonar por uma pessoa nova e ele realmente dissera aquilo para os rapazes e as garotas da Casa quando ainda eram jovens e não entendiam muito bem de sentimentos, pensando melhor ele poderia ter passado aquela lição de uma maneira diferente e melhor, mas esse era Sigmund. Um verdadeiro gênio em diversas áreas e uma pessoa com um grande coração, mas que possuía certa falta de noção para certas coisas, presenciado pelo fato de que ele pegara Nymeria e Lennart no ato e sua primeira reação fora fazer uma piada sobre a situação inteira ao invés de reconhecer que talvez devesse ter batido na porta antes de entrar ou algo do tipo. Realmente era um adulto que nunca tivera muita chance de ser jovem, um arrependimento que carregava consigo até os seus dias atuais, deveria ter aproveitado mais o seu tempo como adolescente.

- Eu disse isso uma vez só. - Ele desviou o olhar para o lado, claramente envergonhado.

- Não precisa ficar com vergonha, é uma boa frase. - Riu Dante, tomando um gole de suco logo em seguida.

- Você consegue olhar para a minha cara e me dizer que isso parece ser o tipo de coisa que alguém como eu falaria? - Sigmund questionou, ajeitando sua postura na cadeira.

- Está com vergonha! - Lennart riu estrondosamente, causando ainda mais embaraço para Sigmund.

Era meio óbvio que Lennart adorava provocar seu amigo de longa data, até mesmo uma figura paterna, e o inverso também era real uma vez que até hoje Sigmund o provocava sobre os erros e coisas bobas que Lennart fizera enquanto ainda estava com a casa. Nunca era de um jeito que pudesse fazer com que Lennart realmente começasse a questionar suas ações e o seu modo de ser, era algo mais leve e muito mais divertido que fazia com que Len revisse algumas das coisas que fazia de modo que pudesse evoluir para o melhor. E do modo que provocava Sigmund o mesmo valia para ele, o homem aprendera muito em suas brincadeiras com Lennart e podia dizer que evoluíra bastante devido aos pensamentos rápidos e palavras afiadas da parte do jovem assassino, ainda que não gostasse muito da ideia de que uma pessoa tão jovem fosse capaz de fazê-lo questionar tudo aquilo que acreditava ou levava em consideração, era um pouco humilhante para um adulto depender tanto do julgamento de um adolescente.

- Disse só uma vez sim, mas foi marcante o suficiente. - Ele deu mais uma mordida no bolo, gesticulando com a mão que segurava o garfo logo em seguida. - Sigmund é o rei dos discursos morais.

- Pode me chamar de sogro, se quiser. - Sigmund riu com a reação de Hanna e parou para pensar no que Nymeria havia dito sobre o apelido de Sig. Era um que já fora usado com ele no passado, então não haveria problema nenhum em ser chamado dessa maneira novamente, apesar de ter o apego emocional à esse apelido devido ao fato de que fora seu melhor amigo quem o usara no passado. - Sig é um bom apelido.

- É um bom apelido mesmo. - Dante sorriu amigavelmente, colocando mais suco no seu copo.

Dante ouvira falar apenas uma vez do melhor amigo de seu pai, sobre como ele fora um dos pesquisadores na Casa e como ambos partilhavam da mesma vontade de transformar aquele lugar em algo que beneficiaria a humanidade como um todo e não apenas os senhores do crime, porém eventualmente seu melhor amigo acabou desaparecendo após a sua filha ter sido usada como experimento pela Casa, obviamente contra a vontade dele, sem nunca mais ser visto. Sigmund gastou muitos recursos e enviou muitos homens e mulheres em buscas por ele, porém nunca conseguiram encontrar nada e no final das contas ele teve que aceitar que provavelmente nunca mais veria seu melhor amigo novamente, pelo menos não até ele querer ser encontrado, recusava-se a acreditar que ele havia morrido, pois nesse caso teriam encontrado o corpo, sempre havia sinais de rastros, mas nunca para onde eles levavam.

O tempo passou e a conversa continuou a fluir, falaram sobre o que faziam na escola, sobre seus passatempos e Nymeria e Lennart tiveram que inventar algumas coisas para não revelar para Hanna que estavam envolvidos com o crime organizado, porém não precisaram mentir muito uma vez que todas as atividades que citaram envolviam os dois estando juntos e se havia algo que era facilmente notável era que aqueles dois eram inseparáveis, estavam presos por um laço que ia além da compreensão e eram laços que repetiam-se em Dante e Hanna também com ambos sendo unidos por algo que ia além da explicação comum. Então chegou a hora de Dante e Hanna partirem, estava ficando tarde e o rapaz sabia que Len e Nym gostariam de falar com Sigmund em particular, portanto retornou para a escola junto de Hanna após uma demorada despedida para os três que ficariam ali, somente após os dois terem se retirado completamente foi que a expressão no rosto de Lennart alterou-se de uma leve para uma completamente séria.

- Precisamos conversar. - Ele falou, ajeitando-se na cadeira.

- Sobre o ser que mordeu Nymeria, imagino. - Sigmund colocou um pouco de café em três xícaras, passando-as para Lennart e Nymeria e ficando com uma para si. - Me contem tudo.

- Ele fez um pacto? - Sigmund parecia estar surpreso, porém logo se compôs e tomou um gole do café que havia servido. - Tolice da parte dele.

- Percebemos isso. Sigmund, você claramente entende dessas coisas, o que mais você não me contou? - Lennart inclinou-se para a frente, suas mãos ao redor da xícara de café, entretanto ele não estava bebendo.

- Tudo o que eu omiti, foi para o seu bem. Casos como o dele são incomuns, porém existem. Criaturas, eventos mágicos, tudo isso sempre ocorre em pequenas escalas. Nunca o suficiente para fazer com que o mundo perceba o que realmente está acontecendo, tudo sempre fica como um mistério que jamais será solucionado. - O homem não parecia estar incomodado com a inquisição da parte de Lennart, era apenas natural que o rapaz estivesse revoltado. - Temo que não há muito que possa ser feito pelo o seu amigo, há coisas que poderíamos tentar, mas tudo depende dele e da conexão que foi formada.

Ele não queria abandonar Akira daquela maneira, um pacto nunca era uma coisa fácil de ser feita ou de ser desfeita e não havia um jeito bom de se evitar pagar o que devia, entretanto valia a pena tentar algo se fosse possível. Se Akira não quisesse ser salvo, ou se o tempo já estivesse acabando, eles não poderiam fazer nada para salvá-lo ou ao menos melhorar a situação dele, Sigmund deduziu que havia sido esse demônio que atacou Nymeria o que significava que ela havia dado sorte em sair viva, não era muito comum encontrar um demônio clemente apesar da grande maioria ser conhecida por brincar com os seus alvos primeiro.

- Dizer exatamente o que existe é difícil, as tentativas de catalogar criaturas mágicas sempre foram meio fúteis já que o mito se mistura ao real e fica difícil saber o que realmente existe. Mas existem criaturas mágicas como vocês já testemunharam, deixem-me pensar nos exemplos mais comuns... Duendes, fadas, esse tipo de coisa. A grande maioria dos seres tem seu fundo em mitos uma vez que os mitos existiram por causa deles, mas existem aqueles como Kuro que vieram de outra dimensão. - Sigmund explicou calmamente.

Lennart um dia fora bem religioso no sentido de que acreditava em Deus e no demônio, mas não seguia nem um nem outro. Só sabia que suas ações estavam sempre contando pontos com um dos dois, suas ações na guerra já eram o suficiente para colocá-lo no inferno por onde sofreria durante a eternidade, porém gostava de pensar que mesmo assim ainda havia uma parte de sua alma que permanecia pura. Atualmente já não tinha tanta fé, talvez por ter passado tanto tempo cometendo atos pecaminosos ele já tivesse aceitado que não adiantava acreditar em Deus se apenas o seu oposto o receberia.

- Criar um portal não é fácil, mas é certamente mais fácil do que achar o que eles precisam aleatoriamente de tal maneira. - O homem parou de explicar e apoiou o queixo em sua mão enquanto pensava. - Sacrifícios por si só nunca são bons, mas feitos em uma cidade como essa? São piores ainda.

- O que tem essa cidade? - Perguntou Lennart.

- Ela é um ponto que atraí pessoas de interesse, como você e a Nymeria por exemplo. Também atraí bastante magia por natureza e normalmente todos estão aqui com um propósito, quando esse propósito for concluído a cidade voltará ao normal. - Contou Sigmund.

- Normalmente eles se mantêm escondidos, o mundo mágico aprecia segredos. - Afirmou Sigmund, talvez fosse por isso que ele tivesse escondido tanto de Lennart.

Lennart também se perguntava porque nunca havia notado algo mágico, com o tanto de lugares que visitara e com o tanto de coisas que fizera era de se esperar que acabasse encontrando uma ou duas coisas mágicas, mas talvez tivesse de fato as encontrado, porém não notara. Como Sigmund disse, o mundo mágico aprecia segredos e ele faz de tudo para que esses segredos não se revelem, então o que pode parecer normal ao primeiro olhar se torna estranho ao segundo.

- Normalmente o propósito não machuca muitas pessoas, é sempre para trazer um equilíbrio mágico para a região. Sempre existem dois lados, como em um jogo de xadrez e sempre existem as peças à serem movidas, com as peças principais sendo as que decidem o destino da cidade. Do outro lado temos esse demônio novo que Kuro citou e do nosso lado... Eu não sei. Não são vocês, apesar de serem peças, as peças principais são outras pessoas. - Explicou Sigmund e ele parecia falar aquilo com um alívio, era horrível ser uma das peças principais, eram normalmente as que mais sofriam.

- Como se reconhece uma das peças principais? - Lennart ainda mantinha seus olhos bem fixos em Sigmund.

- Aos olhos treinados fica mais óbvio, é como se a pessoa tivesse um ar diferente ao redor dela. Mas pode ser qualquer um, desde uma criancinha até a pessoa mais habilidosa dessa cidade. - Sigmund gesticulou, pegando sua xícara de café e tomando mais um gole.

- É uma analogia boa para a situação atual. - Sigmund comentou, então ouvindo o que Nymeria tinha para dizer. - Seu envolvimento mágico vai ser mínimo, o físico eu já não posso garantir nada, a cidade é uma entidade própria e como vocês serão tratados depende apenas dos outros e das ações deles, ser uma peça não impede que você seja atacado apesar de seu envolvimento mágico ser pequeno. Como vocês dois são peças um amigo em comum de vocês é a peça principal, o Peão que vai levar isso adiante. Não é o Dante ou a Hanna, eu chequei quando eles estiveram aqui, mas eles são peças também.

Lennart estava tendo uma dificuldade enorme para digerir aquilo tudo, amigos em comum que havia entre ele, Hanna e Dante eram alguns vários, porém como Nymeria estava envolvida no meio isso diminuía bastante a quantidade de pessoas que poderiam ser, lembrou-se do dia do festival que passou ao lado de seus amigos e pensou que, possivelmente, seria Maxwell ou Melissa, apesar de não poder dizer que era um amigo de Melissa aquele dia no festival deveria ter sido o suficiente para cimentar um pequeno laço de amizade entre eles. Porém, por enquanto, ela era apenas a namorada do Maxwell, nada além disso. Já Maxwell... Conhecia o irmão gêmeo dele, trabalhara junto com o mesmo, conversara por horas e horas com Maxwell enquanto bebiam e se divertiam, então podia dizer que eram amigos de verdade. Sabia também que ele possuía uma amizade com Nymeria, ainda que não fossem muito próximos fora o suficiente para que ela comentasse sobre ele uma certa vez, não era todo mundo que conseguia arrancar isso de Nymeria, ela normalmente se referia aos conhecidos como ''aquela pessoa'', raramente pelo nome como fora o caso de Maxwell.

- Eu acho que esse Peão é o Maxwell Watson. Ele não tem um passado com ocultistas ou coisas do tipo? - Comentou Lennart, olhando para Nymeria em busca de ajuda.

- Esses rumores sobre ele foram só uma loucura da parte dele, uma que ele superou, felizmente. - Lennart comentou e então cruzou os braços, recostando-se na cadeira e pensando. - Ele não só conseguiu sair inteiro como inalou um monte de fumaça e foi o primeiro a sair do hospital, quando pessoas em estamos mais leves que ele ficaram lá por vários e vários dias. Você tem razão, amor. Definitivamente tem algo aí.

- Se realmente é esse Maxwell Watson, vocês já estão o ajudando como peças, apesar de eu não saber bem como esse processo todo funciona. Mas vocês estão ajudando a resolver o problema, isso eu garanto. - disse Sigmund, inclinando-se para frente e capturando mais um pedaço de bolo. - Apenas a amizade de vocês é o suficiente, é o que dizem os manuscritos antigos.

Sigmund não gostava da ideia de depender do poder da amizade para salvar uma cidade, até mesmo o mundo se a situação fosse muito grave, mas as regras do Tabuleiro ditavam que o Peão precisava de ajuda e que essa ajuda deveria vir daqueles que eram mais próximos a ele, o que significava que Maxwell estava completamente dependente do poder que Nymeria e Lennart podiam lhe entregar, assim como Dante e Hanna e a garota chamada Melissa. Havia Nathanael também, irmão de Maxwell e provavelmente o primeiro a aparecer, pelo menos era isso que apostava Sigmund, mas o Tabuleiro poderia possuir regras especiais para irmãos gêmeos ou algo que pudesse barrar esse encontro de começo.