Pela Tristeza Pesar

- Foi culpa minha, se eu tivesse prestado mais atenção eu poderia...

♙ Poderia ter feito inúmeras coisas, fora treinado por um especialista para defender a si mesmo e aos outros e nem mesmo conseguira esse tanto, poderia ter desarmado aquele cara de mil e uma maneiras diferentes, poderia ter levado uma arma consigo para proteger tanto a si mesmo como à Melissa, poderia ter convencido ela a não ir e ter ido no lugar dela. Não adiantava mais ficar pensando no que poderia ter sido, entretanto. Sua falta de ação havia lhe custado muito caro e agora ele precisava comparecer ao velório de uma das pessoas que mais amou em toda a sua vida, precisava olhar para aquele caixão, ver ela e... Precisava sofrer daquela maneira. Como queria simplesmente estalar os dedos e consertar todos os seus problemas, o culto iria desaparecer daquela cidade, Ishmael também sumiria, Melissa retornaria, eles viveriam uma vida mais feliz... Estava cansado. ♙

- Esse dia está sendo longo.

- Não, não foi culpa sua. Olha, por que... Por que você não se senta um pouco?

Ele viu que havia um espaço em um dos bancos onde os três poderiam se sentar de maneira confortável e gentilmente guiou Maxwell até lá, segurando-o pelo seu braço. Assim que fez isso rapidamente foi até a família adotiva de Melissa para dar os seus pêsames, apesar de saber que nunca se deram muito bem assim ele imaginava que a dor que estavam sentindo não era falsa, principalmente a da irmã de Melissa que parecia estar bem ruim com aquilo tudo, após ter feito isso ele imediatamente retornou para o lado de Maxwell e Hanna imaginando que a sua namorada iria querer ir até a família também para dar algumas palavras de consolo.

- Max, você chegou a dormir?

- Eu estou tão ruim assim? Eu estou tentando não me culpar, mas ao mesmo tempo não estou. Mesmo que eu quisesse controlar a minha raiva, mesmo que eu quisesse conviver com essa dor... Nada mudaria. Eu não seria diferente do que estou sendo agora.

♙ Teimoso. Ele gostava de pensar que essa era uma parte de si que Melissa gostava, a sua insistência em jamais aceitar as coisas pelo o que elas eram normalmente seriam as qualidades de um herói, mas naquele momento Maxwell não passava de um desgraçado cujo destino fora manchado com sangue incontáveis vezes. Será que estava pagando pelos homicídios que cometera ao escapar de sua prisão na igreja? Mas por que pagaria pela morte de pessoas ruins? Pessoas que estavam mantendo-o em cativeiro e destruindo a sua mente? Seria Deus assim tão cruel ao ponto de ser incapaz de perdoá-lo por se defender? Maldito seja, então. ♙

- Eu não consegui dormir desde que... - tentou reunir forças para falar ''desde que Melissa morreu'', mas as palavras faleceram em sua boca. - desde que tudo isso aconteceu.

- A primeira coisa que você vai fazer depois disso aqui é ir dormir então. Você está um caco.

Bem vestido e com o rosto destruído, Dante conseguia reconhecer marcas de arranhões nas bochechas de Maxwell que já haviam desaparecido em sua maior parte, mas para o olho atento elas estavam ali e era meio óbvio que Maxwell passara um tempo arranhando a si mesmo, Dante suspeitava que os braços estavam em condição similar ou até mesmo pior, nos dedos haviam as sombras de mordidas que foram claramente feitas para arrancar sangue. Passou um dos braços ao redor dos ombros de Maxwell e puxou-o mais para perto, precisava estar ali pelo amigo em seu maior momento de dificuldade e definitivamente não poderia permitir que ele continuasse a se machucar daquele jeito. Disfarçadamente ele puxou uma das mangas de Maxwell para cima, sabendo que o amigo não iria se importar com isso e abaixou a manga no momento que viu um curativo feito em seu pulso. Já não podia deixar Maxwell sozinho.

- Não conte sobre isso para ninguém.

♙ Ele falou aquilo para Dante, um murmúrio que ninguém além dele poderia ouvir. Não queria Hanna, Lennart e Nymeria se preocupando com ele mais do que deveriam, sabia que era impossível impedir que eles se preocupassem com ele uma vez que eram amigos e na posição deles Maxwell faria o mesmo, mas aqueles ferimentos que causara em si mesmo vieram de um lugar de desespero completo no qual ele não se encontrava mais, fora algo tolo, fora algo... Céus, Melissa o odiaria por aquilo não é mesmo? Ela simplesmente detestaria ter Maxwell se ferindo daquela maneira por conta dela e apesar de não ser capaz de impedir o sofrimento que estava sentindo ele era plenamente capaz de parar aquelas atitudes tolas. Precisava fazer isso por ela. ♙

- Eu tenho um lugar para ficar... Ah. Não vão permitir que eu fique lá, não é? - ele estava no caso falando sobre a família de Melissa, nos papéis aquele terreno onde a casa deles estava passaria diretamente para eles, Maxwell não contava então se quisessem expulsar ele de lá, poderiam fazer isso facilmente e ele não teria o que dizer para se proteger. Um brilho de revolta passou pelos olhos de Maxwell, abaixados olhando para as suas próprias pernas, era como se seus olhos tivessem ganhado uma coloração amarelada, porém era difícil notar isso. - Por que eu deveria deixar eles fazerem o que querem? Aquele lugar não significa nada para eles, mas para nós era nosso mundo. Eu... - a voz falhou e ele escondeu o rosto nas mãos, não estava chorando, mas estava visivelmente incomodado. - Eu vou perder tudo, não vou?

- O Max não pode mais ficar na academia, mas eu posso falar com o meu pai. Na casa dele tem espaço e acho que ele gostaria da sua companhia.

E então Maxwell teve aquela reação, Dante o abraçou de imediato. Ninguém estava prestando atenção neles ou poderiam julgar Maxwell pesadamente pelas suas palavras, ele não podia dizer que Melissa nunca se preocupara com a sua família adotiva, isso era uma mentira enorme uma vez que ela sempre demonstrara carinho e atenção por eles, mesmo que não tivessem suas desavenças. Mas Dante julgava que ele estava certo em dizer que a casa em que viveram não significava muito para a família de Melissa, apesar de ser o local onde a filhas mais velha deles ficava ele não lembrava-se de Max ou de Mel comentando sobre a família dela fazer visitas ou até mesmo ir para o lugar.

- Você vai para a casa do meu pai, sem discussões.

- Não acho que possa ser feito algo. Tudo vai ir embora, a forma como o sol bate na cama quando a gente acordava, o cheiro do café que um de nós levantava para preparar, a visão dela se aproximando bocejando e com passos preguiçosos, o cabelo desarrumado, a mesa que tinha uma ponta que eu quebrei sem querer, o relógio que tinha que trocar a pilha, a pia que vivia sempre limpa... Isso só vai continuar a existir na minha memória, uma manhã perfeita repetida à exaustão. Se algum dia eu adormecer e sonhar com isso, não quero que me acordem.

Não havia muito a ser feito, aquela oficina pertenceria à família adotiva de Melissa. Quantos dias se foram que ele ficara lá com ela? Três semanas? Talvez até menos. Pareciam meses, anos inteiros que ele gastara dentro daquele lugar, respirando o mesmo ar que ela e todo dia lembrando-se do motivo que tinha para sorrir, se apaixonara e se confessara naquele mesmo local, não lembrava-se exatamente de quando se apaixonara, mas certamente fora antes de ir morar com ela, talvez quando adormeceram juntos no dia da invasão à base de operações de Shadow que vira um lado diferente nela, mas sabia exatamente quando notara seus sentimentos pela primeira vez, era uma noite na qual ele estava tendo pesadelos e Melissa tentou acordá-lo e no processo beijara a marca que ele tem nas costas. Aquele beijo suave que pareceu dissipar suas preocupações que o fez olhá-la de uma maneira diferente. Na noite em que se amaram de uma maneira diferente da que normalmente faziam, mais paixão, mais ternura... A visão da luz da lua batendo contra ela, iluminando pedaços de seu corpo, ela fora mais bela do que tudo, que faria a Vênus de Botticelli parecer uma mulher qualquer que se encontra pela rua, isso eram coisas que ele guardaria na sua mente para sempre. Não seriam traduzidos para a sua arte, seriam apenas seus.

- Pode ser. Acho que não adianta eu dizer não, não tenho muita opção.

Dante passou sua mão pelos cabelos de Maxwell, descendo a mão para parar nas costas dele acima do braço de Hanna. Se ele pudesse ele comprava aquela oficina e passava ela pro nome do Maxwell, deixando tudo certo para ele, mas apesar de seu pai possuir uma quantidade impensável de dinheiro, compras deixam marcas e qualquer um que decidisse investigar Melissa ou Maxwell iria acabar descobrindo sobre a Casa e isso criava uma ponta solta. O máximo que podia fazer no momento sem colocar Maxwell em risco era oferecer seu quarto na casa de Sigmund e a companhia protetora de seu pai, até onde sabia Nathanael também era um membro da Casa e poderia fazer companhia para ele sem qualquer repercussão e bem... Para ser honesto, Dante preferia que Maxwell ficasse com seu pai ao invés de ficar na oficina, mesmo que não tivesse problema algum para ele ficar lá, depois de ver aquelas marcas no pulso dele Dante sabia que era uma péssima ideia deixar Maxwell sozinho.

- Você e o meu pai vão se dar bem. - ele então olhou para o lado e viu pessoas se levantando. - Eu acho que vão levar o caixão lá para fora. Vamos indo.

♙ Seu coração parecia estar erodindo com cada momento que se passava naquela igreja, suas próprias palavras, as palavras de seus amigos, os toques carinhosos, os olhares de piedade, os olhares de ódio, a visão do corpo de Melissa naquele caixão. Agradeceu quando a tampa se abaixou, não sabia mais se aguentaria ficar olhando para ele por muito tempo e era algo que fazia seu coração se acelerar pois ele não conseguia desviar o olhar e tudo o que podia fazer era saber que a pele dela estava gelada, que jamais sentiria os seus cabelos entre seus dedos novamente, sua risada era algo que ecoava na sua mente apenas e... Ele tinha medo de esquecer, medo de que sua memória lhe falhasse e os detalhes dela que tanto lhe eram preciosos começassem a escapar sua mente e se tornassem apenas uma sombra. Levantou-se lentamente, apoiado por seus amigos e acompanharam a procissão até o lado de fora, o caminho inteiro os olhos de Maxwell estavam vidrados e ele não conseguia parar de olhar para o chão. Havia um buraco cavado na terra na frente da lápide de Melissa, onde caberia o caixão. Abriram a parte superior do caixão para que as pessoas pudessem se despedir, não haviam muitas pessoas ali, Maxwell foi até o caixão e acariciou sua face uma última vez para em seguida beijar sua testa. ♙

♙ Assim que todos terminaram de se despedir definitivamente o padre deu alguns passos para frente. ♙

- Alguém gostaria de dizer algo? - perguntou o padre.

♙ Todos olharam para Max, mas ele continuava com aquele olhar distante. Era visível que mais um pouco e ele choraria. ♙

- Eu posso começar, então. Quem encontrar as palavras, por favor se pronuncie depois de mim. Melissa Carter foi uma pessoa determinada, uma pessoa amada, alguém que encontrou em suas dificuldades o amor que era necessário para cada um que a conheceu, nem sempre o seu caminho foi fácil, nem sempre ela pôde escolher a melhor opção, mas nosso caminho nunca será reto e nunca será um só. Haverão múltiplas estradas pela qual poderemos seguir e desde que mantenhamos o amor em nossos corações todos eles nos levarão até Deus. E Melissa encontra seu descanso junto com o Senhor, pois ela fez o que poucos fariam, ela deu a sua vida por outro. Da mesma forma que Jesus amou a humanidade ao ponto de tomar seus pecados para si, Melissa amou com fervor uma pessoa ao ponto de sacrificar sua vida por ela, seu amor será para sempre apreciado e lembrado como a atitude de uma pessoa justa.

Aquilo não estava sendo fácil para ninguém, porém para Maxwell parecia estar sendo ainda pior. Dante debatia se fora certo deixar ele vir ou se seria ainda pior deixá-lo em casa, mas também duvidava que alguém poderia ter o convencido a não ir para aquele funeral. Ajudou-o a se levantar e caminhou para o lado de fora, ele de um lado e Hanna do outro, a procissão foi curta uma vez que o cemitério era pequeno e o grupo em si era pequeno também, demorou para Dante soltar da mão de Max, mas ele o fez e foi até o caixão, depositando um beijo na testa de Melissa, não lembrava-se de ter feito isso para ela quando ela ainda estava viva, deveria ter feito. Mais um arrependimento para ser somado ali. Ele sabia que Maxwell e Melissa estavam agindo de maneira estranha e que provavelmente estavam investigando algo, ele deveria ter se envolvido ao invés de ficar para trás e deixar, se ele estivesse lá poderia ter reagido muito mais rápido que eles e poderia ter evitado esse problema todo, se tivesse... Não adiantava ficar pensando no que poderia ter sido, o que de fato acontecera era imutável e estava bem na sua frente, na forma do corpo de sua amiga e do trauma de seu amigo.

- Eu gostaria de dizer algo. - Dante disse, dando um passo para frente com o olhar triste. - Melissa surgiu em um momento difícil da minha vida, em um momento de dor, um momento de dúvidas, eu estava completamente perdido em meus próprios medos quando ela apareceu e me guiou. De uma maneira simples, meio bruta. - deu uma risadinha curta, daquelas que aparecem em um momento de tristeza. - Mas ela me guiou. Eu não estaria aonde estou se não tivesse sido pela amizade dela, ela me demonstrou carinho e amor e eu retribuí da maneira que pude, não sei se foi o suficiente, mas sei que com cada segundo que passei com ela, ela foi apreciada. Melissa merecia mais do que recebeu, ela mostrou que mesmo através de dificuldades é possível mostrar amor por outros. Ela sempre será lembrada pela pessoa que foi, por ter sido a chama de Windfall.

♙ Maxwell olhou para a irmã de Melissa, não tinha muito problema com ela, mas não sabia dizer se gostava ou não dos pais de sua namorada. Não que estivessem sendo insinceros sobre aquilo tudo, mas eles deveriam saber que Melissa desejaria algo diferente, de certa forma todo enterro era mais para a família do que para a pessoa que estava sendo enterrada, então Max não conseguia ficar totalmente irritado com eles. Abriu sua mão e segurou o isqueiro com força, até então toda vez que escutava os outros falando sobre Melissa ele tinha vontade de abrir a boca e falar, mas nunca o fazia, mas foi ali que a sua boca finalmente se abriu. Um pequeno "ah" escapou, porém ele não falou mais nada e apenas fechou sua mão ao redor do isqueiro de Melissa, guardando-o em seu bolso. ♙

- Você tem razão. Nada disso é ela. - o enterro seguiu em frente, o caixão foi abaixado e a terra foi colocada por cima do caixão e por fim o rito foi concluído. Maxwell ficou em pé ali, olhando para o local onde ela foi enterrada sem mover seus olhos, as pessoas foram aos poucos se retirando, a família de Melissa por fim começou a se retirar. - Vocês podem ir, eu vou ficar aqui mais um pouco. - disse para Dante e Hanna, não os respondendo mais até que por fim eles saíram. Mais um tempo se passou com Maxwell apenas em silêncio. - Não se preocupe, padre. Você pode ir também.

- Se você tem certeza disso. Eu estarei na igreja, se precisar. - disse o homem, retirando-se do local. - Parece que vai chover... Os céus estão escuros.

♙ Maxwell sentou-se no chão ao lado da lápide, de certa forma era como se ela estivesse ali ao seu lado como nos dias que sentavam do lado de fora da oficina para fumar e ficar conversando sobre coisas aleatórias. Deveria ter contado sobre o Tabuleiro, talvez assim ela não tivesse ido tão diretamente na base deles, mas Maxwell a conhecia bem, isso só faria com que ela tivesse mais vontade de ir para ajudá-lo, ela estava sempre ajudando alguém, sempre fazendo algo. Se pudesse voltar para o começo, teria parado com seu roleplay esquisito e teria sido mais sincero com ela, teria agido do modo que agiu quando começaram a levar aquela amizade mais a sério. Teria feito tantas coisas... Mas era impossível voltar. Não havia cenário no qual ele saísse verdadeiramente vitorioso. Ele sempre iria perder algo. ♙

- Eu... Eu queria pedir desculpas. Por não ter dito certas coisas, por não ter demonstrado o quanto eu te amo, por não ter feito você ser mais feliz. Não posso me desculpar por não ter morrido no seu lugar, você me bateria se eu fizesse isso. Você, por essas semanas que passamos juntos, você foi a minha vida. Eu me sentia como o homem mais sortudo do mundo só por estar ao seu lado, nunca me passou pela cabeça que um dia poderíamos ser separados dessa maneira, toda vez que eu caía você estava lá para me segurar e me ajudar a levantar, até mesmo em outro mundo você continuava me ajudando. Não acho que vou conseguir seguir em frente, não quero desperdiçar essa vida que você salvou, mas ao mesmo tempo não quero viver sem você. - ele ficou em silêncio por um tempo, olhando para o chão, para aquela grama que fora amassada por seus passos. - Eu sei, eu sei. Não posso desistir agora, tenho que fazer isso funcionar... Me ajuda, Mel. Eu não sei mais como seguir em frente sem você e quanto mais eu penso sobre isso mais eu acabo notando que isso vai acabar de um jeito que você vai odiar, se minha crença estiver certa nós nem mesmo acabaremos juntos. Suicidas vão para o inferno, Melissa. O que faço? Eu não sei nem mesmo se quero continuar vivendo. Eu preciso de você, sem você não faz sentido... Eu amo você.

♙ Ele abaixou o rosto e abraçou suas pernas na frente do corpo e finalmente chorou, chorou tudo o que tinha guardado naqueles dias até ali. Viver separado de Melissa não era algo que ele queria para si como já havia dito múltiplas vezes, mas ia além, ele não queria ver como era um futuro sem ela, ele preferia não ter futuro do que passar mais décadas inteiras sendo lembrado da vez em que falhou em salvá-la, da vez em que ela sacrificou a sua própria vida pelo seu bem, da vez em que um destino belo e brilhante foi arrancado dele pelas mãos de alguém que ele nem mesmo conhecia. Quem era Hans? E por que matar ele não adiantou em nada para aliviar a sua dor? Ele se vingara, ele conseguira ao menos garantir que a morte de Melissa não fora em vão e ainda assim não conseguia se sentir satisfeito. Começou a chover, como o padre dissera, mas ele continuou ali. Não chegou a se molhar tanto, já que alguém apareceu com um guarda-chuva, de início pensou que fosse o padre, mas quando ergueu seus olhos viu Ame. ♙

- Ah, você.

- E o que você espera de mim? Um tapa? Um soco? Não tenho forças para nada disso.

♙ Ele não sabia quem era o jovem na distância, também não estava interessado em saber, aquele era um péssimo dia para se conhecer novas pessoas visto o quão irritado ele estava. Levantou-se lentamente, a grama havia começado a ficar molhada e estava sujando a sua roupa, não era como se importasse, mas Melissa detestava quando ele voltava com as roupas muito sujas ou até mesmo com os tênis imundos ao ponto de sujarem a oficina e a casa. Bateu um pouco em sua calça para limpá-la e olhou para Ame com a expressão de uma pessoa que não tinha muita paciência para as coisas, porém não parecia estar irritado com ela também, se em algum momento a culpara pela morte de Melissa ele claramente já havia superado isso ou ao menos era capaz de separar suas emoções das ações que tinha que tomar. ♙

- Eu e você, nós vamos ter que viver com isso pelo resto de nossas vidas. Ela estava lá por sua culpa e ela levou o tiro por minha culpa, nós dividimos ela se quiser. Mas, olhando para você, lembrei de algo importante. - ele abraçou Ame, não sabia se era apenas exaustão ou se queria passar uma espécie de mensagem para ela com aquilo. Talvez ele apenas estivesse precisando de carinho. Levando sua boca à orelha dela, ele falou. - Eu tenho algo que lhe pertence. É uma faca com sangue nela, pegamos na mansão.

- Eu sei que não seria.

♙ Ele estivera sentado na igreja o tempo inteiro e apesar de estar seriamente desconectado do mundo real, ele registrara o tapa que Ame levara, era possível ver as marcas dos dedos no rosto dela e ele moveu sua mão para encaixar os dedos aonde as marcas estavam, sua mão era maior que a da mãe de Melissa então os dedos se sobressaíam um pouco. Aquilo era o equivalente de Max dar um tapa nela, como ele já afirmara não tinha força nem vontade para realizar tal ação, então se Ame queria tanto receber uma porrada como julgamento de Max, aquilo era o que ela ganharia. Porém com o abraço tudo o que se seguiu das palavras dele foi um suspiro, ele soltou-a e por um tempo pareceu debater consigo mesmo o que deveria fazer em seguida, mas por fim enfiou a mão no bolso interno da jaqueta e tirou um rolo de pano grosso que tinha o formato de uma adaga. ♙

- Eu não queria trazer, imagino que seja um pecado e tudo mais, mas achei que seria aqui que eu iria ver você. Eu agradeceria se limpassem essa cidade do culto. - ele estendeu para frente a faca, nada discretamente entregando-a para Ame. - Essa cidade está em perigo grave, eu não mais se consigo ajudar. Sem ela eu... Deixa quieto.

♙ Ele virou-se de costas para ela, encarando o túmulo novamente. ♙

- Pode ir sem mim, alguém tem que cuidar dela por enquanto. E eu sei que não vai ter sido em vão, porquê eu não vou permitir que tenha sido em vão.

- Eu sei que não estou sozinho. - é por isso que dói tanto, pensou em adicionar. Sentia que com cada pensamento negativo que tinha estava traindo os seus amigos e traindo a memória de Mel, porém era tão difícil olhar para frente naquele momento, era como se cada passo que ele dava fosse feito com os pés acorrentados em grandes bolas de ferro que impediam os seus movimentos mais livres. Lembrava-se de ter se sentido assim com o suicídio de sua mãe, uma vontade de não fazer nada, uma dor que ameaçava engoli-lo por completo, seu coração por vezes disparava e ele via pequenos flashes de Melissa como se o próprio fantasma dela estivesse ali. - Adeus, Ame. Acredito que um dia eu perdoarei você. Não consigo odiar uma pessoa que ela gostava.

♙ Havia uma voz insistente dentro do seu coração gritando que ela não deveria perdoar Ame, que sua vida fora arruinada pela necessidade dela de envolver Melissa em tudo que acontecia naquela maldita cidade, que ela não merecia ter o descanso do perdão enquanto ele chafurdava na lama e na dor, mas tudo isso ele afastou para um canto e voltou-se para olhar o túmulo de Melissa, agora com uma chave de boca icônica para a imagem dela, a chuva continuava a cair e tudo o que Max fez foi sentar-se no chão na frente da lápide e ficar olhando para a mesma. Eventualmente começou a espirrar, mas não se moveu. Seus dentes começaram a bater conforme todo seu corpo se sacudia, mas não se moveu. O padre apareceu e colocou um guarda chuva acima de Max, parado conforme a chuva caía, mas não se moveu. Eventualmente a chuva parou e o padre se retirou, e Max chorou. Foi em silêncio, poucos foram os sons realmente produzidos por ele, fungadas principalmente, mas por vezes alguns soluços escapavam, suas lágrimas caíam em cima de suas calças uma vez que ele olhava para baixo, o molhado das lágrimas misturando-se com o molhado causado pela chuva, escorriam pela sua face como cataratas e acabavam pingando. Em algum momento não registrado pelo padre, Maxwell apareceu dentro da igreja, completamente seco e com uma cicatriz em sua bochecha direita, pediu por um pouco de água com açúcar e foi até o túmulo. E então desapareceu, deixando o copo no chão da igreja, o som do motor de um carro espalhando-se conforme o mesmo se distanciava do local. ♙

♙ Mas ele tinha seus deveres também, disso ele não se esquecera. Então, alguns dias após a morte de Melissa, ele embarcou para o Tabuleiro novamente. Louis estava lá para recebê-lo, os Cognitivos de Dante, Hanna, Nymeria e Lennart lhe apoiaram e ofereceram carinho e conforto, tudo estava igual. Entretanto, não havia ela. Quando olhou para o topo da igreja não viu a figura de uma súcubo descendo pelos ares para abraçá-lo, não houve ninguém para trocar flertes e provocações, não houveram toques, abraços ou sequer mesmo beijos, tudo o que houve foi o silêncio. E nesse momento, Maxwell quebrou. Ele caiu de joelhos no chão gritando de raiva, da sua fraqueza, da dor que sentia pela morte de Mel e os espinhos em suas costas começaram a crescer cada vez mais, destacando-se como pontas negras e vermelhas que pareciam emitir um certo brilho macabro, saíam lágrimas do seu rosto e os Cognitivos tentaram acalmá-lo, Hanna e Dante abraçaram-no, Lennart e Nymeria puseram suas mãos nos ombros dele e o ajudaram a se levantar. Louis apareceu na porta, dizendo para que ele fosse embora do Tabuleiro e voltasse dali duas semanas, aquilo que acabara de acontecer fora o avanço do parasita que havia dentro do seu corpo, tecnicamente falando Maxwell estava mais forte, mas quase morrera no processo para tal coisa, mais um pouco e seu corpo inteiro teria sido tomado. Dali duas semanas o prazo ficaria curto demais, ele não conseguiria salvar a cidade nesse período de tempo. Derrotado, ele deixou para trás o Tabuleiro e retornou para a casa de Sigmund. ♙

♙ Que seja registrado que Maxwell Watson é muitas coisas e uma delas é persistente. Ou teimoso, talvez. Ele, como esperado, não podia retornar para a sua casa na oficina e começara a passar a viver com Sigmund. Toda manhã ele acordava cedo, saía e ia até a oficina e com a segunda chave que roubara, ele abria a porta e subia as escadas e ia para o andar superior. Mesmo que a família tivesse decidido vender os móveis ou se livrar deles, Maxwell colocava algumas latinhas de cerveja e comida no lugar onde ficava a mesa e sentava-se no lugar onde ficava a cama. E então iniciava-se a coisa mais estranha do mundo. ♙

- Eu trouxe alguns materiais para pintar hoje. Que tal ser minha modelo? - ele perguntou para o vazio e o vazio respondeu com a voz e forma de Melissa.

- Vai ser aquela pintura? - ela estava ali, de pé, com as mesmas roupas de sempre como se nada tivesse acontecido. Invisível para os olhos dos demais, mas perfeita aos dele.

- Para aquela eu precisaria do material digital, então vamos guardar sua pose para outro momento. Eu só quero registrar a sua beleza, mesmo. - respondeu Maxwell, começando a montar a tela com calma. - Que acha de se deitar na cama um pouco? Só para eu pegar o comecinho.

- Você está pedindo isso só para poder fazer o contorno dos meus peitos.

- Acertou em cheio.

♙ Ele via a cama como se ela ainda estivesse ali, via conforme Melissa tirava seus tênis e se deitava em cima da cama, uma perna dobra e outra esticada e, de fato, via o contorno dos seios dela. Era um artista, sua memória era invejável, ele guardou todos os detalhes daquele lugar e todos os detalhes dela. Checara aquele dia e sabia que a família de Melissa estaria ocupada com uma espécie de concurso da vizinhança da qual escolheram participar, então as chances de aparecerem ali eram mínimas. Começou a pintura, azul claro para a cama, rosa para o pouco de pele que aparecia dela e preto e vermelho para a sua roupa. Estava atento, se alguém fizesse um movimento do lado de fora ele saberia, precisariam ser realmente habilidosos para passar do seu nível de concentração. ♙

♙ A morte era uma marca presente na vida de todos aqueles que sobreviviam, a culpa por vezes aparecia junto. Maxwell já havia parado de se culpar, não conseguira evitar sentir isso no começo, de que seria ele quem deveria ter morrido no lugar de Melissa, mas eventualmente isso passou e ele começou a procurar motivos para continuar a viver a vida que ela havia protegido, pela qual havia se sacrificado e amado tanto, tomou a decisão de que jamais teria uma parceira novamente, não por um senso de lealdade, apesar de esse certamente ser um fator na decisão dele não era o principal raciocínio por trás daquilo, mas por saber que nunca conseguiria fazer uma outra pessoa ser feliz, não enquanto estivesse pensando nela. Melissa jamais deixaria as suas memórias e ele decidira proteger essas memórias a todo custo, iria até o final de sua vida lembrando-se dela e mantendo seu sorriso ainda quente em suas memórias, logo Maxwell não planejava encontrar sua felicidade ao lado de outra pessoa, desde que pudesse seguir em frente ajudando os seus amigos e cuidando da sua vida ele seria alegre, teria seus momentos de dor e sofrimento pela perda dela, mas sabia que conseguiria seguir em frente. Só precisava salvar aquela cidade. ♙

- Tem alguém lá fora. - disse Melissa, sentando-se na cama e olhando para a janela.

- Essa pose é ainda melhor, me lembre de fazer essa quando voltarmos. - Maxwell pousou o pincel e caminhou até a janela, olhando para os dois lá embaixo. Nunca havia visto eles em toda a sua vida. Se a alucinação de Melissa não era prova o suficiente de que ele estava ficando insano, aquilo certamente era, mesmo ali de cima ele conseguia ver traços de Melissa naquelas duas pessoas. - Sim, era aqui. Esperem um pouco.

- Vai falar com eles?

- Se forem os novos donos do lugar eu estou fodido de um jeito ou de outro, então é melhor ser amigável.

♙ Ele ajeitou suas roupas e deixou todos os materiais, alimentos e outros apetrechos para trás conforme descia as escadas. Tudo o que queria era pintar um quadro de Melissa, seus últimos quadros sem ela haviam sido tão simples e tão ruins que ele não conseguia se dar por satisfeito como artista, simplesmente tinha que ser melhor, mas quando Melissa modelara para ele Maxwell fora capaz de produzir quadros e desenhos de maneira ainda mais rápida e mais bela. Ela realmente era tudo o que faltava em sua vida. Assim que chegou no térreo ele olhou diretamente para o que restava na oficina, apenas um espaço vazio, sem carros, sem instrumentos para conserto, apenas uma mesa em um canto que fora feita colada contra a parede e por isso não fora removida. Havia uma cadeira também, meio velha de forma que não venderia muito bem e que precisaria de manutenção se fosse ser usada por um longo período de tempo. Uma lágrima teimou em escorrer do seu olho esquerdo, o sonho de Melissa fora desfeito em tão pouco tempo... ♙

♙ Abriu a porta e saiu para o lado de fora, o sol cegando-o por um momento conforme seus olhos se ajustavam à luz mais forte. ♙

- Sem querer soar rude, mas quem são vocês? - menos de um segundo depois, ele continuou. - Okay, é rude eu não me apresentar primeiro. Sou Maxwell Watson, namorado da Melissa.