Recanto da Nymeria

Natasha não respondeu, continuando imersa em seus pensamentos de tal modo que não percebeu que havia ignorado o que Edrik havia dito, caso contrário teria falado alguma coisa antes de criar sua própria linha de conversa. Aparentemente todos ali estavam tendo seus próprios problemas dos quais estavam tirando-lhes a concentração completamente, como fora possível ver em Nymeria e que agora era visto em Natasha que normalmente era bem ativa e que gostava de conversar. Levantou-se por fim e foi até ao lado de Edrik, sentando-se e suspirando pesadamente antes de continuar a falar.

- Houve um pequeno projeto do governo russo, algo tão pequeno que não merecia a atenção da população geral, mas foi criada uma cidade inteira em um certo local, ela sendo planejada do zero. Era um teste para ver como diferentes coisas que fossem aplicadas em um local alteravam a população e o modo como ela interagia entre si. Basicamente, era pra ver se isso aumentaria a produtividade. - Natasha segurou a mão de Edrik, sorrindo um pouco ao fazer isso. - Meus pais se mudaram para essa cidade quando eu tinha dois anos de idade. Nove anos depois a cidade entrou em colapso, o projeto havia falhado e tudo foi abafado. Naquela cidade era preciso fazer de qualquer coisa para sobreviver, meus pais me abandonaram poucos meses depois e eu não faço a menor ideia do que aconteceu com eles. Tudo o que eu tinha era uma faca e muita vontade de sobreviver. Passei dois anos lá antes do Inverno Soviético chegar na cidade para lidar com um dos líderes das gangues locais, sua família vendia armas para essa gangue e eles estavam recusando-se a pagar o que deviam. Era o começo ainda do Inverno Soviético, o grupo não ia nas missões arriscadas que vai hoje, eram só mais um grupo que faziam os outros de exemplo.

- Eu era A pestinha violenta. - Ela abriu um pequeno sorriso, porém este parecia ser um pouco forçado. - Essa gangue tinha bastante comida e eu vivia roubando deles, então eles me perseguiram e me capturaram. Quando o Inverno Soviético chegou, eu tinha dado um jeito de escapar.

Edrik conseguiria imaginar o estado em que Natasha estava nessa época, ela deveria ter quase catorze anos de idade e estava fazendo o que podia para evitar morrer de fome. Ela preferiu deixar de fora seu estado físico quando foi capturada, em uma cidade que estava naquele estado era de se esperar que ela tivesse sido surrada, porém devido aos problemas que causara ao longo dos meses para essa gangue ela acabava apanhando diariamente. Quando ela encontrou-se com o Inverno Soviético eles a encontraram usando apenas de trapos, de pés descalços e com um revólver em suas mãos que roubara do guarda que conseguira matar.

- Eu não sabia o que fazer quando vi um grupo de pessoas armadas matando todos que estavam ali e então um deles me capturou, a arma que eu tinha roubado foi pro chão e eu não tinha mais o que fazer. Eu me debati e mordi o braço que estava me segurando, acho que foi a surpresa que fez ele me soltar. Eu não sei bem o que me levou a fazer isso, mas eu pedi ''me levem com vocês''. - O olhar de Natasha continuava distante, ela escutava as risadas dos demais membros, elas se calaram logo em seguida. - Quando viram que eu havia escapado e matado os outros por conta própria eles pareceram começar a me levar a sério, e então o homem que tinha me capturado me perguntou se eu realmente queria ir com eles e que eu provavelmente iria desejar morrer se fizesse isso. Eu disse que não me importava e, honestamente, fiquei com medo daquele homem enorme me recusar. Se eu soubesse que ele era um coração mole, não teria ficado assim.

- Ivan me adotou e disse que eu poderia sair do grupo quando eu quisesse. Só que... - Ela pareceu engasgar-se em suas palavras. - Eu não sei fazer mais nada além disso, Edrik.

Era possível notar lágrimas nos olhos dela, ainda que a mesma se recusasse a chorar. Aconchegou-se mais contra Edrik e suspirou, não sabia dizer o porquê de estar contando tudo aquilo para ele, não era algo que o mesmo precisava saber e seria melhor se ele nem mesmo soubesse do que ela fizera, Natasha deixara de fora os detalhes mais sórdidos, não sabia bem o que Edrik iria pensar se soubesse exatamente por onde ela passara e o que comera para sobreviver. Era como se aquela cidade estivesse encoberta por um véu de desespero e tristeza, todos estavam dispostos a fazer qualquer coisa para sobreviver, mesmo que isso significasse sentir uma enorme dor em seguida e era justamente isso que Natasha sentia toda vez que acordava, sua mente ia para aquele projeto falho de cidade e ela... Por mais ridículo que fosse pensar isso justo quando estava ao lado de alguém que amava, Natasha sentia-se culpada por ter sobrevivido ao custo das vidas de outros.

- Eu não sei se consigo levar uma vida normal, Edrik. Não sei se mereço uma vida normal. - Natasha havia criado um escudo para si própria nos últimos anos, usando a máscara de alguém que adorava a destruição que causava. - Eu não sei amar do jeito que vocês amam.

- Me ensine, por favor. Se não eu... Eu nunca vou ser o suficiente.

Ela precisava aprender sobre o método que outros utilizavam para amar, ou seu coração jamais se acalmaria e ela permaneceria uma bomba-relógio andando de um lado para o outro. Ela não julgava-se ser o suficiente para Edrik, Natasha acreditava que ele sempre seria capaz de encontrar uma pessoa melhor e que soubesse lhe amar corretamente. Tudo o que Natasha conhecia eram explosões de emoções e demonstrações exageradas de paixão, nunca tivera um relacionamento como aquele no passado, todos os que tivera foram extremamente curtos e não tiveram nem mesmo a metade do amor que ela tinha por Edrik.

- Eu não acho que sou a pessoa certa para você, mas eu quero ser. Você merece ter os meus positivos e ainda mais além disso. - Ela encostou sua cabeça no ombro de Edrik, fechando seus olhos por um tempo. - Eu quero um futuro com você, mas não sei se mereço ele.

- Okay.

Era como se ela fosse o oposto de quem normalmente era, estava quieta e retraída, não havia nada excessivo em seus movimentos ou em suas palavras. Era estranho. Certamente era para ela e provavelmente era para Edrik também. Mas ela não possuía a força de vontade naquele momento para fazer seu papel como a pessoa explosiva do grupo, cujas emoções eram sempre extremas e bem notáveis, naquele momento ela só queria aproveitar aquela proximidade com Edrik, portanto aconchegou-se mais nele e fechou os olhos por um momento enquanto pensava e o escutava.

- Eu jamais vou sair do seu lado. - Ela segurou a mão dele e começou a acariciá-la. - Eu não vou descansar até colocar uma aliança nessa mão.

Natasha lutaria com unhas e dentes para manter Edrik ao seu lado, não importava quem ou o quê ficasse no caminho ela iria enfrentá-los com fúria e força. Claro, no momento só havia uma pessoa entre o relacionamento deles e esta pessoa era o pai de Edrik e atual chefe de Natasha, apesar de ela ver Ivan como seu verdadeiro chefe era inegável que as ordens que recebiam vinham diretamente dele. Porém isso eventualmente mudaria, o plano de Nymeria e Edrik iria funcionar e eles estariam com o caminho livre para seguir em frente com aquela paixão que apenas crescia.

- Agora virou uma competição, principezinho exibido. - Ela sorriu de volta para ele e beijou os lábios de Edrik. - Vamos. Uma boa noite de sono cairia bem agora.

No caminho de volta para a escola, Lennart pensara sobre o que havia acontecido naquele dia. Por algum motivo o fato de uma demônio ter atacado ele e Nymeria não parecia algo tão enorme ao ponto de ele estar perdendo a cabeça, porém isso tudo se devia ao outro problema que estava ali. Nymeria estava agindo de um jeito esquisito, ela normalmente era silenciosa, fria e calculista quando conversava com alguém, mas poderia mostrar certo calor e carinho para as pessoas que realmente amava. Ela estava quieta demais, não estava respondendo direito e parecia estar completamente desligada. Sergei os deixou nos portões da escola e ambos entraram, haviam chegado a tempo portanto o porteiro não os questionara, sabia que os dois tinham permissões especiais naquela escola, e logo ambos estavam de volta no quarto de Nymeria. Infelizmente, Lennart não poderia dormir na cama de Nymeria, o ferimento dela poderia ser aberto por algo feito durante o sono, porém isso não queria dizer que ele não ficaria ali. A guerra o acostumara a dormir no chão e contra a parede, havia se tornado algo confortável para ele.

- Nym... - Ele chamou, assim que trancou a porta atrás de si. Dias atrás isso teria um significado completamente diferente. - O que aconteceu? Você está estranha.

Lennart puxou uma cadeira e colocou-a próxima da cama. Imaginava que aquilo não seria um problema que resolveriam em pouco tempo e com apenas algumas palavras, se o problema era com ele então havia um pouco mais ali. O problema é que Nymeria estava claramente se enrolando, normalmente ela já teria dito qual era o problema e como ele estava a afetando para que ambos pudessem solucionar eles juntos, mas ali... Ali ela estava realmente desequilibrada com isso, e para uma pessoa que possuía uma mente tão afiada como a dela aquiloera um enorme problema. Machucava um pouco ela estar distante dessa maneira, Lennart só queria fazer com que voltassem para os dias onde ele conseguia fazê-la sorrir com algumas palavras.

- E que erro foi esse?

- E isso te irrita. No final você queria ele como um aliado, mas não foi possível.

Lennart estava sentado na cadeira, observando conforme Nymeria falava e se movia. Tão inquieta. Não podia dizer que compreendia a situação dela, nunca tivera esse tipo de relacionamento com ninguém e nem mesmo sabia se algum dia chegaria a ter, tudo o que possuía eram amigos e inimigos. Era mais fácil assim, ter esse aspecto preto e branco para a sua vida dava uma sensação de controle e lhe acalmava e os céus sabiam que ele precisava de toda a calma possível. Inclinou-se para a frente e capturou a mão de Nymeria, acariciando a mesma suavemente.

- Você não tinha controle algum sobre isso. Não sabia como isso iria terminar e não sabia o que iria acabar desejando. Você não pode culpar suas ações sendo que não tinha em mente o que aconteceria.

- Você não teve a sua mentalidade atual na época, isso acontece com todo mundo. Ficar fantasiando sobre o que poderia ter sido não vai ajudar ninguém.

Lennart, apesar de estar sendo mais direto do que o comum, não estava irritado com Nymeria ou algo do tipo. Na verdade bastava olhar para ele para notar que ele estava exausto, apenas mentalmente já que não fizera nada além de dar atendimento médico para Nymeria na mansão. Ainda assim ele continuava sorrindo e acariciando a mão de Nymeria. Pulou então da cadeira para a cama e usou sua outra mão para começar a acariciar a cabeça de Nymeria.

- Você não é como o seu pai. Existe uma clara diferença entre vocês. Ele é cruel, se diverte com a dor dos outros e você não é assim, você se preocupa mesmo que não demonstre isso direito. - Nymeria era extremamente fria e calculista, então outras partes do seu emocional acabavam sofrendo. - Você não pisou por cima do Akira, as circunstâncias apenas fizeram com que vocês acabassem de lados opostos. Mas se você for tomar cuidado com cada passo que der você nunca vai seguir em frente.

- E o que fazer isso vai ser o suficiente. Vou estar ao seu lado para te segurar sempre que precisar de mim.

Lennart abraçou Nymeria de volta, mantendo o seu olhar no rosto dela a todo momento. Ele não era o melhor segurança do mundo, irônico considerando que começara como o guarda-costas de Nymeria, ele nem sempre poderia fazer algo para ajudá-la quando a situação pedisse por isso, ele era humano afinal de contas e tudo o que podia fazer era tentar. Assim como ela tentaria fazer o seu melhor para garantir-se que não ocorressem nenhum tipo de arrependimento como aquele.

- Não vou poder deitar ao seu lado, mas vou passar a noite aqui.

- Não se desculpe. Você tem sentimentos também, é normal que isso aconteça.

Ou ao menos deveria ser normal, sabia que Nymeria era uma pessoa mais calma e com uma coleira apertada ao redor de suas emoções, porém havia uma clara diferença entre controle e fingimento, ela não podia ficar o tempo inteiro sofrendo aqueles golpes e manter uma fachada de absoluta frieza quando por dentro sofria. Pelo menos não com ele. Lennart não era uma pessoa que tendia a esconder o que sentia das pessoas que gostava, Sigmund fora o primeiro a ficar sabendo dos seus traumas e de seus problemas após a guerra, e a partir do momento em que ele e Nymeria estabeleceram uma ligação mais forte ele deixara-se revelar para ela as suas dores.

- Vou usar sim, obrigado. - Mas o chão é tão confortável quanto uma cama, pensou Lennart. Afastou-se lentamente dela, como se cada segundo próximo de Nymeria fosse extremamente precioso. Começou então a arrumar sua ''cama'' no chão com os travesseiros e os cobertores, pegando apenas o suficiente para criar certo conforto. - Se precisar de mim, eu vou estar aqui.

Lennart por um tempo dissera ter matado seus sentimentos e que vivia sem eles tranquilamente, apenas agindo pelo bem da missão. Aquilo sempre fora uma mentira, ele buscara criar uma imagem de intocável para evitar que alguém pudesse se apegar a ele quando sua vida o levava sempre de um lado para o outro. O mais certo seria dizer que não se importava com seus sentimentos, que suas ações levavam outras coisas como prioridade e que suas emoções ficavam de fundo, mas isso foi lentamente provando-se ser o contrário, quando Nymeria foi sequestrada Lennart quase perdeu a cabeça de tanta raiva que tinha e isso lhe custou muito na missão, sendo quase morto no final dela e sua vida apenas foi salva por conta da droga que o Inverno Soviético usava constantemente. Depois disso, começou a colocar suas emoções no seu devido lugar.

Sua mão subiu e encontrou a de Nymeria na metade do caminho, segurando-a com gentileza. - Eu também te amo.