Refeitório

O tempo estava longe de estar bom, chovia do lado de fora e relampejava. A cada minuto que passava, os sons ficavam mais altos e arrancavam as reações surpresas de alguns estudantes que estavam no refeitório. Como já era de seu costume, Maxwell estava sozinho, sentado em uma das mesas cutucando sua comida com o garfo. As últimas semanas foram uma completa torrente de merda para o rapaz, ele fora drogado, sequestrado e quase morrera. Em Helhole, isso poderia ser considerado uma terça-feira para ele, porém o rapaz viera para Windfall justamente para se esquecer daquela porcaria de cidade, mas parecia que não importava para onde ele fosse, ele estava sempre solitário, carregando junto de si a sua mente quebrada.

Passou a mão por seu rosto, em uma tentativa de ficar acordado. Não dormira bem nesses últimos dias, sua mente correndo e gerando perguntas inúteis. Ele considerou deixar aquela cidade, mudar-se novamente e tentar dar mais uma arriscada para obter a paz. Mas é claro, ele mudou de ideia e ficou ali. Era difícil fazer o papel de demônio, era difícil afastar as pessoas de si. O homo sapiens é uma criatura sociável, quer ela goste disso ou não, e manter-se isolado de todos trazia as suas consequências. Não é como se ele não tivesse visto isso vindo em sua direção, ele escolhera agir daquela maneira por um motivo afinal de contas. Suspirou e engoliu um pouco da comida que havia em seu prato.

- Ora, ora, minha criança favorita está triste? - Aquela voz veio como um sussurro em seu ouvido, tão próximo, porém ao mesmo tempo tão distante. Acompanhando aquelas palavras, uma risada. Suave e sedutora, ela era capaz de fazer até mesmo o mais furioso dos guerreiros abaixar sua arma e escolher a conversa ao invés do combate.

- Veio tentar-me novamente, Ishmael? - Sussurrou e então engoliu mais um pouco de sua comida.

- Você faz isso com todos que encontra, mas quando eu faço isso com você é um incômodo? - Voltou a rir, enquanto Maxwell comia, claramente entediado - Maxwell Johann Watson, você é uma criatura bem inconstante.

Os olhos azuis de Maxwell voltaram-se para a janela, e lá pôde ver a figura dele, parada no meio daquela torrencial chuva. Ishmael assumira uma forma como aquela apenas para provocar Max, que tinha uma imagem completamente diferente para a aparência de um verdadeiro demônio. Seus cabelos pretos eram soltos e grudados contra seu rosto, devido a água da chuva que o molhava. Dentre eles, dois pequenos chifres saiam para cima, negros como a noite. As feições de Ishmael eram perfeitas e extremamente atraentes, suas pupilas cinzas brilhando com charme e malícia. Havia brincos em suas orelhas pontudas, assim como um piercing em seu seu lábio inferior. Vestia uma camiseta branca que estava colada contra seu corpo, graças a água da chuva, e por cima desta trajava uma enorme jaqueta de inverno, com direito a pequenos pelos no gorro. Sua calça jeans era segurada por um cinto, cuja fivela era feita de metal e de um dos bolsos provinha uma corrente que fazia um pequeno arco na extensão de sua perna direita. Em seu pescoço haviam correntes de metal finas, porém de tamanhos variados, uma delas estando pouco abaixo de seu pescoço. Uma delas, no entanto, ia até abaixo de seu umbigo e esta era um crucifixo, porque era claro que seria um crucifixo. Max nunca soube se Ishmael era um verdadeiro demônio ou apenas uma alucinação de sua mente danificada. Ainda assim, o considerava um amigo, um que recusava-se a abandoná-lo e era invisível aos olhos alheios.

Ishmael:

O sequestro nem chegara a perturbar Maxwell, não por já ter sido sequestrado e torturado antes, mas sim porque ele realmente não se importava com o que acontecia naquela cidade. Por ele, o próprio Diabo poderia morar ali e desde que não lhe incomodasse não havia problema algum com isso. De certa forma, havia um demônio que morava ali, mais precisamente partilhava o quarto de Maxwell, provocando-o e tentando-o a todos os momentos. Suspirou mais uma vez, Ishmael era uma verdadeira dor de cabeça.

Ele notou a aproximação de Melissa, mesmo que ela não tivesse o notado de início. Ele não via mais o demônio, mas podia sentir o quão animado ele estava pela aproximação daquela garota. Ele partilhava da opinião de Maxwell, ela era bem interessante. Tratou de vestir aquele sorriso maldoso e provocativo em seus lábios novamente, não queria demonstrar nenhum tipo de fraqueza, principalmente para ela. Notou os ferimentos da garota, mas não perguntou nada, o que ela fazia em seu tempo livre era problema dela.

- Aaah, essa garota. Você acha que se eu a tentasse, ela cederia? - Questionou-o Ishmael, que não planejava fazer isso. Por mais interessante que Melissa fosse, Maxwell exercia um fascínio impressionante naquele demônio.

Maxwell não respondeu, seria estranho já que só haviam ele e Melissa naquela mesa e ela ainda não dirigira a palavra para ele. Por fim, o rosto de Max voltou-se para ela, seus cabelos negros caindo ao lado de seu rosto e seus olhos azuis emitindo aquele brilho repleto de segundas intenções, como já era de costume. Max nunca mudaria, ele manteria-se sempre sendo aquele enigma, uma peça de um quebra cabeça que sumira, um humano que chegava perto de um demônio com um sorriso em seus lábios.

- Olá Melissa, sentiu tanta falta minha assim? - Questionou Max, seu tom de voz provocativo como sempre - É sempre bom vê-la.

- Fale para ela que eu disse oi - Falou Ishmael, sua voz ecoando na mente de Max, acompanhada da costumeira risada do demônio.

A reação de Melissa sempre era o que coroava as interações que aqueles dois tinham, a irritação dela era como um hidromel que Max bebia constantemente e acabara por se viciar. Enquanto todos se afastavam e mantinham distância, demonstrando nojo ou medo, Melissa ficava ali e  não escondia a raiva que possuía pelas palavras e ações de Maxwell. Era justamente por isso que ele a achava interessante e continuava a conversar com ela. Bom, por isso e pelo fato de que aquela academia inteira sabia que era melhor evitar Max.

- Ah, mas eu teria feito isso. Não minto que considerei. Mas deixar esse local seria um favor, e eu não faço favores a ninguém - Sorriu levemente com aquele pensamento, sabia muito bem que não era desejado, mas ainda assim continuaria ali e não sairia até que finalmente alcançasse a paz ou morresse - Como sempre, sua maneira de demonstrar afeição é excelente.

Ele comeu calmamente, antes de abrir um pequeno sorriso para ela. Esticou-se brevemente, antes de voltar seus olhos para a garota.

- Eu sou um misantropo, esqueceu? Odeio humanos, logo os evito. Ah, mas você é a exceção - Aquela última parte era para ter saído como um flerte, porém pelo tom de voz indiferente de Maxwell pareceu apenas mais uma parte de sua fala.

- Posso conversar com ela? Você deixa - Questionou-lhe Ishmael, antes de gargalhar brevemente - Ou está com medo que eu a roube de você?

Max suspirou e então ergueu sua cabeça, um sorriso surgindo em seus lábios. Ele ergueu o dedo indicador em um gesto de silêncio, antes de soltar uma leve risada e voltar seus olhos para Melissa. Nas outras mesas, sussurros que não eram bem sussurros, mas o assunto que corria ali era o mesmo.

- Está ouvindo isso? Estão falando sobre nós - Ele fez silêncio mais uma vez antes de repetir o que ouvia - '' Dois malucos na mesma mesa '' - Ele gargalhou logo em seguida, antes de falar novamente - Viu só? Formamos uma bela dupla.

Pela lógica, Melissa já deveria ter se afastado de Max, logo após lhe dar uma boa surra porém ela não o fizera. Talvez fosse por isso que ele não se preocupava tanto em manter sua máscara quando conversava com ela, porém ainda era difícil retirá-la completamente, sentia-se vulnerável demais quando agia normalmente com alguém. Portanto, continuava a manter toda aquela farsa, fingindo ser alguém inatingível, uma pessoa que não se importava em continuar sozinho. O que seria mais insano, fingir ser um demônio ou se isolar do resto do mundo e achar que isso era algo bom?

- Favor para o resto, ora essa. As pessoas dessa academia certamente ficariam felizes em me ver partindo. Mas não sou tão legal assim - Sorriu para ela, seus olhos fechando-se momentaneamente. Ishmael acabara de entrar no refeitório, porém é claro que ninguém o via, não, ele existia apenas aos olhos de Maxwell. O demônio sentou-se ao lado de Melissa e passou seu braço pelos ombros dela, porém a garota não sentiria nada além de um súbito frio - Talvez seja, mas não posso garantir. Nunca provei disso.

- Sua mãe está se revirando no túmulo depois dessa - Comentou Ishmael, um sorriso pior do que o de Maxwell surgindo em seus lábios - Vamos lá Max, você está fraquejando. Ela vai notar, Maxzinho ♫ Vai notar que você é uma pessoa boa, lá no fundo. O quão surpresa ela vai ficar? Não, talvez fique decepcionada! Você não era maldade pura? - Ishmael gargalhou, jogando sua cabeça para trás, enquanto seus olhos brilhavam em vermelho - Max, Max. Esqueceu da sua promessa?

Maxwell suspirou. Ele não se esquecera do que prometera, anos atrás. Precisou de alguns momentos para voltar a conversar com Melissa, deixando que sua voz ecoasse pelo refeitório. Abriu um leve sorriso para ela.

- Sim, eu já notei isso. Se eu ganhasse dez dólares para cada vez que me falaram '' Elementar, meu caro Watson '' eu estaria rico - Falou Max, voltando seus olhos azuis para Melissa, seu tom de voz mudando completamente. Melissa poderia notar, ele estava verdadeiramente preocupado agora - Por que? Aconteceu algo com ela? Ela está bem?

- Não, não. Pode falar - Ele disse, sorrindo calmamente para ela. Ele queria ouvir aquilo, ele precisava ouvir aquilo. Maxwell sabia bem o quanto estava mentindo, porém era apenas uma reação natural do rapaz, caso não continuasse com a sua farsa ele acabaria sentindo-se exposto e indefeso, as duas sensações que ele mais odiava sentir. Naquele momento, ele continuava a fingir ser um demônio, tanto para seu bem quanto para o bem de Melissa. Ele sabia que, mesmo que a garota não admitisse, ela acabaria se preocupando com ele caso o rapaz demonstrasse não estar bem - Claro que sou um mentiroso. Sou assim por natureza.

Aquele algo de bom que Melissa notara em Maxwell, precisava ficar escondido por diversas camadas. Caso contrário, o plano de Maxwell falharia e ele teria que quebrar uma promessa que fizera. Maxwell podia ser várias coisas, mas ele não era um quebrador de promessas. A partir do momento que ele dava sua palavra para alguém, ela seria cumprida. Era algo que mexia com a honra do rapaz. Podia até parecer que ele não tinha honra alguma, mas esta era uma das poucas qualidades de Max.

- Se fosse com outra pessoa, eu faria o mesmo - Max disse, dando de ombros logo em seguida. Depois do sequestro, ele ficou na casa de seu irmão Nathanael, que havia acabado de se mudar para Windfall, voltando apenas alguns dias atrás, logo ele não teria como saber sobre o bem-estar de Hanna - Merda... merda - Murmurou Maxwell, seus punhos fechando-se - É tudo culpa daquele puto do Prescott - Os olhos de Maxwell eram raiva pura. Ishmael ria - Da próxima vez que eu encontrar ele, eu vou fazer o filha da puta desejar estar morto.

- Essa cidade está virando um caos. Eu vi que chegaram alguns alunos novos, encontrei com um deles, Dante é o nome dele. Ele ainda está começando a fazer a mudança dele para cá, eu meio que vi ele de vista. Não parece ser perigoso - Falou Maxwell, olhando ao redor e abaixando sua voz, aquele assunto não deveria ser discutido em público - Mascarados? Tipo os de Miami?

Ok. Maxwell sabia bem mais do que ele demonstrava. Por mais que fossem conhecidos nacionalmente, os mascarados perderam notoriedade nos últimos anos e haviam se tornado algo de conhecimento aprofundado de quem vivia em Miami, ou para quem conversara com Noah Smith, algo que Maxwell fizera alguns dias após seu primeiro encontro com Melissa. Fora algo... interessante. Para se dizer o mínimo. Ele acabara por descobrir que Noah já fizera parte dos mascarados, porém precisou prometer, após ter sido ameaçado de morte, que não iria revelar isso para ninguém.

- Essa cidade vai ser destruída no processo - Murmurou Max, e de certa maneira ele estava certo. Os estragos já poderiam ser notados e tudo estava começando a ir pelo ralo - Só foi notar isso agora?

Maxwell preocupava-se com o que iria acontecer, ainda mais pelo fato de terem pessoas ali que eram importantes para ele. Hanna e Melissa já haviam sido envolvidas em um sequestro, ele não precisava de uma guerra entre máfias para piorar a situação inteira. Precisava manter Hanna longe disso, ele sabia que Melissa aguentaria, ele tinha o suporte de pessoas que lidavam com coisas parecidas com isso, porém Hanna não podia contar com algo parecido.

- Eu consigo fazer um estrago maior com as minhas mãos, acredite em mim.

- Ainda assim vou dar uma conversada com ele, ver se realmente não há nada de estranho com ele - Falou Max. Da maneira que ele estava falando, era quase como se ele se importasse com tudo aquilo que estava acontecendo. Na verdade, ele só estava procurando alguém para poder irritar - Fuck.

Com aquela última palavra, Maxwell deixou claro que havia entendido um pouco do que Melissa deixara no ar. É claro, ele não tinha como saber de todos os exatos detalhes, mas sabia o suficiente para notar que havia um desses mascarados naquela cidade. E que isso não era um bom sinal. Na verdade, era um péssimo sinal. Miami fora pintada de vermelho por esses homens e se eles estivessem querendo fazer isso em Windfall, eles teriam problemas.

- Sim, nós temos muita sorte. Como sempre - Max suspirou, aquilo só estava ficando pior conforme os segundos passavam. Não era nenhuma surpresa que ele estivesse tão estressado e tão desanimado daquela maneira. Antes ele desejara morrer com todas as forças, mas agora que encontrara pessoas pelas quais valiam a pena viver, se ver pego em um fogo cruzado não lhe parecia uma coisa tão boa assim - Aaah, eu sabia que você me amava.

Maxwell levantou-se ao mesmo tempo que Melissa, trazendo seu prato consigo. Ele planejava ir para seu quarto e se afogar em bebidas e engasgar-se em cigarros. Um bom resumo de seus últimos dias naquele lugar. Mas, antes que pudesse de fato se despedir de Melissa e ir buscar as suas drogas, ela fez aquela pergunta. E por um momento, o velho Max voltou.

- Você não vai conseguir reconhecê-lo - Os olhos de Max brilharam por um instante, tamanha malícia estavam naqueles olhos azuis que era uma surpresa eles pertencerem a um ser humano - Claro que tenho. Enchi o estoque novamente. Quer ir encher a cara? Claro que quer, vamos.

Ele soltou o prato dele em cima da mesa novamente, sem nem se preocupar em levar ele para o lugar certo e deu um leve puxão na camiseta de Melissa, para que ela o seguisse até seu quarto.

(Cena fechada)